Livros no Blurb

sexta-feira, 28 de março de 2008

Poema à mãe

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.




Eugénio de Andrade (Os Amantes sem Dinheiro, 2002)


segunda-feira, 24 de março de 2008

[As consequências da pequena cultura]

N'uma palavra, Portugal devia ser o jardim da Europa. Mas não esqueçamos que, para isso, era preciso formar previamente o jardineiro, visto que na realidade a situação actual resulta em primeiro logar do estado social da raça. Assim, torna-se evidente que a reforma do typo nacional pela educação é a necessidade mais imperiosa, a base indispensavel da evolução que póde dar ao povo lusitano a solidez e a prosperidade que logicamente correspondem ás suas qualidades proprias e ás do seu paiz.


Léon Poinsard (Portugal Ignorado, 1912)


quinta-feira, 20 de março de 2008

[As incertezas do tempo presente]

Emfim, nem os intuitos nem a acção podem limitar-se ao apertado limite das fronteiras, e todas as manifestações da vida são hoje essencialmente internacionaes. É pois necessario estarmos sempre promptos para sahir do nosso meio, da nossa especialidade, do nosso paiz, e para isso devemos viajar, saber as linguas, conhecer e comprehender o estrangeiro. Hoje em dia não é possivel a qualquer povo voltar atrás e concentrar-se em si proprio. Todos são arrastados á força no turbilhão rapido das relações communs inevitaveis. Pouco importa que se queira ou se não queira, que se tenha saudades do socego dos bons tempos passados ou se admire a actividade febril dos dias presentes, é forçoso caminhar, ou então cahir no marasmo e na pobreza, até sobrevir a inflitração e o dominio das actividades estranhas, isto é, a conquista, a assimilação, o desapparecimento da raça.


Léon Poinsard (Portugal Ignorado, 1912)

domingo, 16 de março de 2008

Os meus livros 18

Capa de "Zona de Intervenção da Leadersor. Roteiro Natural" (António Pena, Lda., 1999)


Um aspecto do interior do Roteiro


A Zona de Intervenção da Leadersor integra 6 concelhos do norte alentejano, a saber: Gavião, Ponte de Sor, Alter do Chão, Avis, Fronteira e Mora. No total, este território abarca 278.900 hectares.
Além da versão em língua portuguesa, o roteiro teve ainda uma versão em inglês e outra em alemão.

domingo, 9 de março de 2008

[Ode Marítima]

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros portos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.



Fernando Pessoa (De Poesias de Álvaro de Campos)

quarta-feira, 5 de março de 2008

Animais, plantas e paisagens de Portugal 10

Anta da Mealha (serra do Caldeirão|concelho de Tavira)


Anta da Ordem (concelho de Avis)


As antas (ou dólmenes) são monumentos megalíticos tumulares pré-históricos, na maioria dos casos neolíticos, constituindo testemunhos vivos de ocupação humana antiga. São mais frequentes nas zonas litorais embora, em Portugal, se possam encontrar dispersos pelo território. O tipo e predominância das formações rochosas locais determinam a natureza do substrato de que são constituídas; nos exemplos apresentados, a anta da Ordem é granítica e a da Mealha xistosa.

sábado, 1 de março de 2008

[Serra da Estrela]

Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem. A solidão enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa sombra. A serra, porque só a pé ou a cavalo a podiam vencer, parecia incomensurável, muito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refegos brotavam superstições e lendas — histórias que os pegureiros contavam, ao lume, a encher de terror as noites infindas.
O homem viera para ali há muitos séculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda os que levantavam o seu abrigo de granito nos sítios mais propícios; e; quando o faziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circundante. Os génios da montanha e as fúrias do céu possuíam, assim, quase toda a majestosa extensão da serrania, ermáticos domínios onde podiam transitar com passos de fantasmas ou bramir livremente.
No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada depois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.


José Maria Ferreira de Castro (A lã e a neve, 1947)