Livros no Blurb

sábado, 31 de janeiro de 2009

[O Corvo]

Às duas da madrugada, na noite funda, com um rebramir de mar sempre presente, ouço a buzina do pastor que chama os outros lá do alto, do portão. E partem juntos no escuro: vão ordenhar as vacas à Ribeira Funda, à Ribeira da Vaca, à Feijoa dos Negros, baldios a noroeste da ilha, por montes e vales, onde só crescem algumas faias e cedros. Cada lavrador tem dois boizinhos, os bois do carro, ao pé da porta; os outros andam nos currais, ao ar livre, até Fevereiro. As vaquinhas, encantadora raça do Corvo, são mungidas nos pastos, e produzem este leite perfumado que não me canso de beber e que sabe a todas as ervas rasteiras que cobrem o chão como um tapete, e que os pastores designam uma a uma pelo nome: sabem ao trevo enamorado de três folhinhas esguias em cada ponta, ao guedilhão, ao azevém, ao feno, à solda de florinhas amarelas, à mão-furada, à lia vaca, à lia vaquinha, à milhã, à erva estrelinha de flores brancas, e às variedades de fetos que eles distinguem pelos nomes de feto serrim, feto rato e molar, feto porco e feto branco — que dão camadas sucessivas de pasto nesta humidade que destila o céu. Duas vezes por dia as ordenham — se mama o leite, como eles dizem — e só ao fim da tarde começa a bicha a descer a íngreme ladeira.

Raul Brandão (As Ilhas Desconhecidas)

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Os meus livros 26

Capa do Roteiro Natural do Concelho de Coruche (C.M. Coruche, 2002)

Um aspecto do interior deste livro


Coruche é um concelho conhecido pelas suas características ribatejanas e a sua ligação|tradição tauromáquica e de criação de gado bravo. Contudo, do ponto de vista das suas paisagens e das suas particularidades naturais, parece continuar um pouco ignorado. Apesar de se encontrar praticamente às portas da capital apresenta uma vasta área de charneca terciária, coberta por montado de sobro (onde se inclui também o pinheiro-manso), despovoada e percorrida apenas por caminhos de areia. Evidencia ainda um "prolongamento alentejano", granítico, onde pontua o montado de azinho. No seu seio surgem, dispersos, vastos armazéns de água que amenizam um pouco a aridez da charneca. O rio Sorraia atravessa-o longitudinalmente a caminho da foz, no estuário do Tejo. É na dependência deste rio que existem os solos mais férteis (lezíria) nos quais se praticam culturas de alto rendimento. Montados, albufeiras e linhas de água albergam uma comunidade biológica de grande relevância que se pretende dar a conhecer.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

[Guardador de vacas]

Os animais precisam de verde, resmunga-lhe a avó. Constantino percebe o que ela quer dizer, mas entrega-se à fantasia de admitir que as vacas e as burras necessitam de comer cores, agora um bocado de verde e depois outro de amarelo ou de vermelho. E enquanto as desamarra da manjedoura, dá-se ao gosto de pensar como seria divertido levá-las a pastar no arco-íris, podendo cada uma delas escolher a cor que mais lhe apetecesse ou misturá-las e fazer cores diferentes. […]

Alves Redol (Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Animais, plantas e paisagens de Portugal 18

Soito no Outono


Castanheiro multissecular


Folhas de castanheiro


Ouriços


O castanheiro (Castanea sativa) inclui-se na família das fagáceas, a mesma dos carvalhos com os quais é aparentado. Trata-se de uma árvore de folha caduca, corpulenta e de copa arredondada, que pode viver centenas de anos chegando a atingir porte considerável. As folhas são pecioladas, grandes, alternas, serradas, em forma de ferro de lança (lanceoladas). As flores masculinas e femininas são relativamente pequenas, dispostas numa inflorescência em forma de espiga (amento), amarelo-clara a esbranquiçada, de 13 a 30cm de comprimento, que nasce na axila das folhas. O fruto é a bem conhecida castanha que se desenvolve em número de 1 a 3 no interior de uma cúpula globosa e espinhosa (o ouriço).
Alguns autores defendem que o castanheiro ter-se-á extinguido em Portugal no princípio do Holocénico, para ser reintroduzido há cerca de 2.000 a 2.200 anos. Seja como for fez parte da floresta primitiva da Península Ibérica.
Existe sobretudo a norte do Tejo em regiões frescas e com elevado teor de humidade atmosférica (minho, trás-os-montes, beira interior). A sul do Tejo encontramo-lo na serra de S. Mamede (Alto Alentejo), na serra de Sintra, no Cercal e na serra de Monchique.
Floresce em Maio|Junho. O fruto começa a caír em Outubro. É uma planta própria do oriente mediterrânico (Turquia).
Os povoamentos de castanheiro assumem 2 formas diferentes: o soito e o castinçal. O soito é uma formação em estrutura de parque, semelhante ao montado, para produção de castanha. O castinçal é um povoamento mais ou menos denso, de árvores esguias, para a produção de madeira.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Vilancete de Abel pastor

Adorai, montanhas,
Ó Deus das alturas !
Também as verduras !
Adorai, desertos
E serras floridas,
Ó Deus dos secretos,
Ó Senhor das vidas !
Ribeiras crescidas,
Louvai nas alturas
Deus das criaturas !
Louvai, arvoredos
De fruto prezado !
Digam os penedos :
Deus seja louvado !
E louve meu gado
Nestas verduras
Ó Deus das alturas !


Gil Vicente

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

[O primeiro vinho]

Todos os frutos que se comem e o primeiro vinho têm o mesmo travor agro, a que se mistura o cheiro a folhas podres. Encanta-me a lide grosseira da adega onde os jornaleiros rouçam as pipas para as alinharem: é nesta escuridão, junto às quatro padieiras do lagar reluzindo à chama da candeia, que o vinho vai fazer-se até ao S. Martinho. — No S. Martinho prova o teu vinho.

Raul Brandão (Memórias III — Vale de Josafat)