Às duas da madrugada, na noite funda, com um rebramir de mar sempre presente, ouço a buzina do pastor que chama os outros lá do alto, do portão. E partem juntos no escuro: vão ordenhar as vacas à Ribeira Funda, à Ribeira da Vaca, à Feijoa dos Negros, baldios a noroeste da ilha, por montes e vales, onde só crescem algumas faias e cedros. Cada lavrador tem dois boizinhos, os bois do carro, ao pé da porta; os outros andam nos currais, ao ar livre, até Fevereiro. As vaquinhas, encantadora raça do Corvo, são mungidas nos pastos, e produzem este leite perfumado que não me canso de beber e que sabe a todas as ervas rasteiras que cobrem o chão como um tapete, e que os pastores designam uma a uma pelo nome: sabem ao trevo enamorado de três folhinhas esguias em cada ponta, ao guedilhão, ao azevém, ao feno, à solda de florinhas amarelas, à mão-furada, à lia vaca, à lia vaquinha, à milhã, à erva estrelinha de flores brancas, e às variedades de fetos que eles distinguem pelos nomes de feto serrim, feto rato e molar, feto porco e feto branco — que dão camadas sucessivas de pasto nesta humidade que destila o céu. Duas vezes por dia as ordenham — se mama o leite, como eles dizem — e só ao fim da tarde começa a bicha a descer a íngreme ladeira.
Raul Brandão (As Ilhas Desconhecidas)