Livros no Blurb

sábado, 1 de março de 2008

[Serra da Estrela]

Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produziam os rebanhos dos Hermínios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem. A solidão enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa sombra. A serra, porque só a pé ou a cavalo a podiam vencer, parecia incomensurável, muito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refegos brotavam superstições e lendas — histórias que os pegureiros contavam, ao lume, a encher de terror as noites infindas.
O homem viera para ali há muitos séculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda os que levantavam o seu abrigo de granito nos sítios mais propícios; e; quando o faziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circundante. Os génios da montanha e as fúrias do céu possuíam, assim, quase toda a majestosa extensão da serrania, ermáticos domínios onde podiam transitar com passos de fantasmas ou bramir livremente.
No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada depois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.


José Maria Ferreira de Castro (A lã e a neve, 1947)